Oswaldo Vigas Antológica 1943 – 2013
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Brasil
Abril – julho 2016
Reencontro e revisita
Oswaldo Vigas, aos 27 anos, era um promissor artista venezuelano que compareceu com três pinturas na delegação de seu país que participou da II Bienal de Artes Plásticas de São Paulo. Foi a edição do evento consagrada para as comemorações do 4º Centenário da Cidade de São Paulo, entre os meses de dezembro de 1953 e janeiro de 1954, com a inauguração do Pavilhão das Nações e do Parque Ibirapuera, projetados por Oscar Niemeyer e equipe.
O delegado da Venezuela para a II Bienal, Juan Röhl, o saudava no catálogo como “dotado de uma bela intuição sensível nas suas composições, mostra-nos a riqueza sensual de sua paleta”. O início da década de 1950 foi virtuoso para o reconhecimento desse jovem artista, então premiado em várias mostras em seu país, e já no rumo para sua estadia de doze anos em Paris. Vigas ainda participaria da IlI Bienal de São Paulo em 1955 com duas pinturas, assinalando possivelmente a última aparição do artista no Brasil.
Rever Mujer (1952) e Yare (1952), duas das obras expostas na II Bienal, poderia ser interpretado como o reencontro de Vigas com São Paulo. Em um espaço não muito distante daquele em que foram expostos em 1953 – hoje conhecido como Pavilhão Armando de Salles Oliveira –, na instituição que acolheu o acervo das primeiras bienais de São Paulo, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – abrigado no edifício que na celebração do 4º Centenário era o Pavilhão da Agricultura.
O artista venezuelano passou à margem da cultura brasileira. Mas sua atuação se alinha ao universo latino-americano dos anos 1950 e 1960, no qual também brasileiros compartilharam atitudes. Vigas foi um dos vários artistas que participaram na experiência da Síntese das Artes como concebida pelo venezuelano Carlos Raúl Villanueva, arquiteto do extraordinário campus da Universidad Central de Venezuela, reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Integração das Artes foi outro termo que cunhou o debate, no qual o brasileiro Lucio Costa, divergindo desses conceitos, chamou de Comunhão das Artes. Nesse saudável desencontro de definições, Portinari, Di Cavalcanti, Clóvis Graciano, Lívio Abramo, Alfredo Ceschiatti, Athos Bulcão, entre outros, se alinham com Diego Rivera, Mateo Manaure, David Alfaro Siqueros, Oswaldo Guayasamín, José Clemente Orozco, Wilfredo Lam, Miguel Alandia Pantoja, José Chávez Morado e Oswaldo Vigas, no rito de uma “aventura plástica latino-americana”, parafraseando Damián Bayón.
Mais que o reencontro de Vigas com São Paulo, trata-se do encontro de São Paulo com um grande artista venezuelano praticamente desconhecido no nosso meio cultural, cuja retrospectiva resgata seu papel e importância não só para o Brasil, mas para a América Latina e para o mundo.
Após percorrer Lima, Santiago e Bogotá, é com grande satisfação que o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo recebe a retrospectiva Oswaldo Vigas Antológica 1943-2013, agradecendo à Fundación Oswaldo Vigas e a curadora da mostra, Bélgica Rodríguez, pela oportunidade de apresentar de corpo inteiro para o público brasileiro o grande mestre venezuelano.
Hugo Segawa. Diretor MAC USP 2014-2015
Pesquisa Plástica e Memoria na obra de Oswaldo Vigas
Lisbeth Rebollo Gonçalves. [1]
Pela primeira vez, acontece em museu brasileiro uma exposição de Oswaldo Vigas. Este encontro com a trajetória plástica do artista venezuelano proporciona ao público o conhecimento da produção de um expressivo artista da modernidade latino-americana, pois nesse cenário, ele é um dos construtores da estética peculiar, em que ecos do passado se juntam à pesquisa das novas linguagens da arte.
Oswaldo Vigas desenvolveu, primeiramente, estudos artísticos em seu país natal, tendo depois uma relevante experiência de interação com Paris, o centro mais importante das artes no decênio de 1950. Ele viveu doze anos naquela cidade -- de 1952 a 1964.
A dinâmica de seu percurso o colocou em estreito contato com a arte moderna do século XX, possibilitou-lhe a convivência intensa com o que havia de mais atual na pesquisa estética do seu tempo. Foi uma experiência que também vivenciaram outros latino-americanos, pertencentes como ele à geração dos modernos, como por exemplo, Torres Garcia, uruguaio, Wifredo Lam, cubano, Roberto Matta, chileno, Fernando de Szyszlo, peruano, Antonio Bandeira, brasileiro. Eles trarão, da sua relação com Paris, significativas práticas poéticas para a história da arte de seus países.
Na efervescência do meio artístico francês, Oswaldo Vigas se debruçou, com entusiasmo, sobre problemas no âmbito da pesquisa plástica. Retrabalhou o entendimento do espaço plástico na pintura, compreendeu a arte como linguagem, sem deixar de lado, porém, referenciais significativos da sua cultural de origem. Em suas pesquisas plásticas, a tradição trouxe, muitas vezes, uma imersão no universo mítico e este se amalgamou com as premissas da modernidade --- um amálgama essencial e uma das chaves para compreendê-la, pois nela coexistem tradição e ruptura.
A busca da expressão essencial
Na prática artística, por volta de 1953, questões de linguagem estética o preocuparam e sua pintura passou a buscar maior depuração. Linhas e estrutura do espaço plástico ganharam sua atenção. Nesse ano, apresentou-se na II Bienal de São Paulo, evento em comemoração ao IV Centenário de fundação dessa cidade brasileira. Em 1953, Vigas compareceu, igualmente, ao IX Salão de Maio de Paris, no Museu de Arte Moderna da cidade, momento em que são convidados à exposição importantes artistas abstracionistas como Atlan, Dewasne, Poliakoff, Soulages, Vieira da Silva, entre outros.
Pode-se dizer que Vigas estava se afirmando no circuito mundial das artes. A década lhe foi profícua na pesquisa plástica e, para ele, trouxe importantes realizações, com notável avanço em sua carreira. Em 1954, participou da XVII Bienal de Veneza, comparecendo com três obras no Pavilhão da Venezuela, que foi, nesse ano, inaugurado nos Giardini. Expôs, também, na União Pan-americana, integrou a mostra organizada pelo Smithsonian Institute, destinada a percorrer diversos museus dos Estados Unidos.
Por via da pesquisa abstrata, surgiram em sua obra, resultados de inovação que repercutiram na compreensão do espaço plástico na pintura.
Na sua produção do período, as telas apresentam tons sombrios, traçados grossos em negro, o uso de cinzas, ocres e verdes, com uma intensa densidade simbólica, apesar do diálogo com a abstração geométrica. Aconteceu com Vigas algo semelhante ao que se deu, na mesma época, na obra de outros artistas latino-americanos como Wifredo Lam e Roberto Matta ou com os brasileiros Aldo Bonadei e Burle Marx. Um campo de exploração das tensões entre abstração e figuração se definiu como inevitável para todos eles, em sua pesquisa estética. Mergulharam no desafio de experimentar a arte abstrata, de origem europeia. Debruçaram-se, todos estes artistas, sobre a pesquisa da linha e da estruturação do espaço.
Nas composições desse tempo é possível notar a importância da linha, sua musicalidade, a certeza do gesto do artista, construindo a composição e definindo um espaço dinâmico, onde há sutileza de tons ocres, ora mais claros, ora mais escuros – é uma pintura plenamente musical. Nesse momento, é possível perceber a emergência de forte densidade poética em seu trabalho.
Se a cor cumpre papel significativo em sua arte, a linha se impõe no processo de elaboração da composição. A cor tem papel funcional, contribuindo para a obtenção de equilíbrio e para a sensação de movimento. E a linha, gerando formas, é pulsão, define certa vibração: a linha intersecciona vivamente o espaço da tela, com um princípio de organização abstrato, mas onde persiste leve sugestão de realidade que se evidencia por meio dos títulos dados às obras. E estes remetem o espectador ao exercício de uma elaboração simbólica. A obra de Vigas está em plena maturidade.
Pintura e Memória arcaica
No exercício de apreciação do trabalho do artista, é possível localizar um ponto de tensão estética entre abstração e figuração, sendo este ponto uma força motriz geradora de forma. Neste contexto, parece estar imbricada a dimensão da memória arcaica.
Da pura pesquisa de composição onde a questão do espaço pictural é fundamental, o artista move-se para elaborações, em que as questões formais continuam presentes e importantes, mas deixam vir à tona imagens que fazem pensar em personagens ritualísticos de raízes culturais remotas.
Este movimento é, como se observou, uma propriedade que dá identidade especial à obra de muitos artistas plásticos latino-americanos --- caracterizando o seu modo estético de criar. Está em Lam, em Matta, está em Torres Garcia, já mencionados, e está também em vários escritores renomados na literatura, como Carpentier e Garcia Marques, entre outros.
A prática metafórica diz respeito a uma alteridade que resiste no tempo.
A pesquisa da matéria
Uma fase fortemente matérica e mais gestual emergiu na obra de Oswaldo Vigas, no início dos anos de 1960. Nestes trabalhos, a imaginação transformou-se em impulso vital, o pintor investigava a dimensão espaço- tempo, tão importante na pesquisa abstrata --- espaço e tempo imbricam-se, abre-se um caminho que busca o absoluto. Valoriza-se o gesto na criação plástica.
Aconteceu em Oswaldo Vigas algo semelhante ao que encontramos em Wols ou em Atlan. Em todos eles a técnica é, como diz Vallier, o motor da imagem. A matéria abre espaço para jogos de imaginação, intencionalmente ou não. Nas experimentações destes artistas, a relação com a pintura é de ordem fenomenológica. É uma pulsão de energia interior, pulsão libidinal, como diz Lyotard. Dinâmica energética que transgride os códigos de leitura da imagem.
Memória Figural
Os arquétipos simbólicos se manifestam no ato de figurar. Tornam-se memória figural e são desafiadores para quem realiza a apreciação de obras de arte.
Nas telas deste período, mesclam-se seres, animais, vegetais, constituindo um só corpo. Oswaldo Vigas desenvolve nesta fase, novamente, uma acentuada volta às origens culturais.
Contudo, surgem mudanças na sua elaboração formal. Fundos livremente trabalhados em cores intensas – vermelho, amarelo, azul, preto; fragmentação das formas, reafirmação da importância da linha aparecem ao lado da cor e da matéria. Em alguns trabalhos o artista encaminha-se para experimentação de formas mais geometrizadas, elaborando construções com o recurso da fragmentação da imagem.
Experiência Tridimensional
A memória figural também está presente nas esculturas que Vigas produzirá por esta época (anos 1960) e mais tarde, nos decênios de 1980 a 2000. Neste contexto, o espectador é levado a um mundo onírico povoado de imagens fortemente expressivas.
Nas obras tridimensionais percebe-se, mais uma vez, a importância que têm a matéria e as texturas como elementos de linguagem plástica.
A experiência escultórica estabelece um significativo diálogo com prática pictórica. A escultura e a pintura passam a constituir um campo dinâmico e inter-relacionado de pesquisa plástica. Ocorre, entre os dois meios de expressão, um diálogo formal, emergindo uma “nova figuração arquetípica”. Seriam imagens ritualistas? O artista parece inventar e reinventar novos diálogos estéticos, no ritual de criação sem limites que, ao longo de sua trajetória, a sua arte sempre celebrou.
Oswaldo Vigas
Bélgica Rodríguez
Desde muito pequeno, Oswaldo Vigas descobre barreiras para chegar a arcanos de outros amanheceres: começa a aventura da arte. Tem um talento especial e inato que se encontrava nas sombras das árvores e nos sons provocados pelo vento que protegem o leito do rio Cabriales da cidade de Valencia, que foi onde ele nasceu e onde encontrou essa vocação escondida em seu ser. O espaço aberto desta importante cidade do interior da Venezuela o recebeu neste mundo em 4 de agosto de 1926 e, aos poucos, foi despertando nele o espírito e o gosto pela beleza: a pintura era seu destino. Ele conseguiu dominar suas inquietações de jovem artista abrindo seu espírito aos “fantasmas” criativos que o aproximam de revelações bem diferentes do quotidiano. Suas primeiras obras de tipo barroco mostram formas e personagens fantásticas cuja influência é cubista, que tinham sido extraídos de memórias e lembranças, bem como de práticas de pinturas e leituras da história da arte que ele tinha feito sem ter recebido nenhuma orientação acadêmica: Tetragramista II e Composición IV (ambas de 1943). Ele terminou a escola primária e secundária sem deixar de lado o interesse que tinha pela arte; também não esquivou o rigor em suas ilustrações, desenhos e collages; nunca estudou em uma academia de arte, mas se formou em medicina na Universidade Central da Venezuela, uma profissão que nunca exerceu para poder se dedicar exclusivamente à arte.
Como estava consciente do que desejava, procurou um caminho que lhe permitisse criar uma estética própria na pintura figurativa da Venezuela dos anos cinquenta. Uma profunda fascinação pela cultura pré-hispânica local o leva a viajar por diversas regiões do país. Ele conhece e estuda a iconografia destas manifestações artísticas; adora a figura feminina, a Vênus achatada de olhos marrons, e dela toma elementos e feições que aparecerão depois na figura que identifica sua produção artística: a personagem da bruxa: “Depois de achatar a cabeça delas, estiquei também o pescoço, fiz aparecerem as costelas, tirei os dedos das mãos e dos pés. Deixei à vista os ossos dos braços, fiz que aparecessem alguns galhos, rebentos e frutas tropicais em qualquer parte do corpo delas e para que nenhum membro do reino animal se sentisse excluído cobri as Bruxas de óxido, de cristais e de todos os outros minerais vindos do céu (…)” (Catálogo da exposição de 1996, Casa das Américas, Havana, Cuba). Vigas se aproxima da cosmogonia telúrica destas culturas antigas, dos misteriosos antecessores que estão presentes na geografia da América Latina. Revisando suas próprias crenças, descobre a imagem que as representa, suas atmosferas e seus conceitos e com toda essa informação cria uma temática. É normal que se fale das Bruxas de Vigas. O artista encontra uma via e deixa marcas calmas e turbulentas que tornam atraente seu caminho percorrido.
Entrar para a oficina de Oswaldo Vigas é penetrar em um universo cheio de lembranças, de referências sobre a história da arte da Venezuela e da América Latina, de presenças e ausências, de esculturas pré-hispânicas, de um grande leque de opções; também é encontrar uma série de pinturas colocadas corretamente em ordem cronológica, como se estivessem esperando serem mostradas em alguma exposição; são as dele. Ele fez um grande esforço para guardar, em seu próprio museu, obras que foram feitas desde 1942 até hoje. Pinturas, desenhos, gravados, esculturas, cerâmicas e tapizes que demonstram que sua vida inteira foi dedicada ao trabalho da arte. Não tem trégua nem descanso, e se houver, é para ler e reler aqueles tratados que eram indispensáveis para que ele refrescasse sua memória e conhecimento. Ele também fala, grita para defender seu mundo criador que se reflete em uma obra que é somente de Vigas: “Nunca fui rigorosamente abstrato, nem rigorosamente figurativo. O que sempre fui é rigorosamente Oswaldo Vigas”. As imagens que veremos a seguir podem ser reconhecidas imediatamente e demonstram que ele tem um estilo pessoal coerente do ponto de vista formal e que coincide com sua filosofia pessoal em relação à vida e à arte; “Sou o raio e o trovão”, ele disse isso dele mesmo em um escrito polêmico sobre arte que foi publicado há alguns anos em um jornal local. Em suas crenças é fundamental a sacralização transcendente da arte, bem como a múltipla função que tem, especificamente aquela que apela à autonomia da forma e das emoções como centro vital. Entrar à oficina de Oswaldo Vigas é entender a origem e as qualidades que aparecem na obra dele, como se se tratasse de um objeto belo, que decorre de uma experiência criadora.
Um aspecto relevante na obra de Vigas é a sua conexão com certos princípios da percepção direta, bem como com sensações fluídas que podem transformar a imagem do presente imediato e, ao mesmo tempo, mostrar um passado que vem de um processo de associações. Em cada década as bruxas mudam em sua gênese: as dos anos sessenta são agressivas, violentas e, ao mesmo tempo, gentis, mais próximas ao expressionismo figurativo, característica das vanguardas históricas da Europa e de Nova Iorque. O artista está imerso em um universo de violência ligado a uma teologia pessoal figurativa, que é valiosa na transgressão de um contexto criativo no qual a figura como centro temático pretende ser eliminada. Portanto, a lógica formal do seu trabalho responde a certos parâmetros relacionados com a união do simbólico com o icônico em uma área globalizada cheia de problemas humanos.
Na pintura de Vigas é notável o cuidadoso procedimento formal marcado pelos traços grossos em preto que se alinham com a figura reconstruída ou com o mesmo plano geométrico de linhas grossas que a delimitam e criam sua abstração. Partindo de um projeto prévio que, é claro, muda com o passar do tempo no processo de pintura, ele trabalha com o tecido, mas seguindo aquele modelo de criação mental que guia com precisão o diagrama de composição imaginado. Em gavetas ele reúne milhares de bosquejos, desenhos e esquemas aos quais recorre frequentemente para criar, sobre diversos suportes, alguma das modalidades que pratica. O bosquejo é entregue a uma mão que, aparentemente por acaso, repassa a superfície do tecido, papel, arenito ou outro material. Este não é um ato irracional, muito pelo contrário, é uma ideia planejada racionalmente. O resultado final expressa a liberdade gestual da brocha ou do pincel, que são manipulados com facilidade e segurança. Vigas defende a liberdade do ato criador e do espírito, para se entregar com a certeza de saber o que está procurando. Dentre outros aspectos, ele está muito interessado na sequência plástica e na forma significativa, isto é, a forma com conteúdo que, a final de contas, tem uma estreita relação com o sentido da beleza que ilumina suas obras. É uma beleza particular que não pretende somente ser contemplada, mas também chegar a concretizar um sentimento humano que leva Vigas a considerar seus efeitos estéticos em relação ao contexto que representa com autoridade.
Há vários elementos que poderiam ser considerados para fazer referência à trajetória de Vigas mas, claramente, será a forma-figura feminina conhecida como a bruxa a que domina os cenários de seus diversos períodos. Ele começou com A Grande Bruxa (1951), a que o fez ganhar o Prêmio Nacional de Artes Plásticas que recebeu em 1952, colocando-o fortemente no meio artístico de um país onde estava se iniciando o modernismo e onde estava se procurando uma linguagem universal através da abstração geométrica. Foi assim como ele entrou na turbulência criativa originada pela abertura da já histórica Oficina Livre de Arte de Caracas. Nessa época, Vigas simplificou a forma, abstrata ou figurativa, bem como a estrutura da composição. A figura feminina é colocada sobre um fundo de cores planas, representou geometricamente não somente o corpo, mas também sua expressão, e utilizando a força cromática e a linha valorizada, progressivamente fez surgir imagens de profundo conteúdo simbólico e icônico de acordo com a energia da natureza que se impõe e com os ambientes misteriosos. Este último aspecto é uma característica constante em todos os temas e gêneros abordados por Vigas, que são vários: fantástico no início de sua carreira; figurativo, abstrato, orgânico e geométrico, às vezes na paisagem, nas décadas seguintes.
Durante os anos cinquenta, ele fez uma pequena mudança na geometria que o levou a apresentar propostas de grande beleza e força plástica. Vigas realizou uma série de obras geométrico-abstratas nas quais, apesar de ter dividido a composição em rigorosos planos geométricos, chama muito a atenção o fato de ele não ter perdido a sensibilidade sensual que é uma característica importante de sua pintura e de ter mantido uma estética de tipo orgânico: Figura descomposta (1956). Quando foi convidado pelo arquiteto Carlos Raúl Villanueva para participar do Projeto de Integração das Artes no campus universitário da Universidade Central da Venezuela, ele realizou quatro murais em mosaico veneziano com temática abstrata. Vigas passou etapas rapidamente. Nos anos sessenta incorporou o informalismo, uma tendência que entrou naquele momento na Venezuela e que foi bem recebida por um grande número de importantes artistas por ter um estilo iconoclasta e irreverente, por sua absoluta rejeição à figuração e mais concretamente à abstração geométrica. O informalismo ocupa a maior parte dessa década. Vigas apoiou estes códigos, que eram uma novidade naquela época, sem que isso implicasse que ele se afastasse completamente da figuração. Em grande parte da obra que ele realizou neste período aparecem ocultos esboços que se assemelham a misteriosos fantasmas escondidos na exuberância da pincelada envolvente; outro sintoma figurativo está na referência temática dos títulos, os quais sempre têm uma conotação a um universo quotidiano conhecido: Géminis o Naciente XVI (ambas de 1963). Aqui Vigas conjuga o informal e o expressionista com elementos visuais próprios da figuração e da abstração, criando uma proposta complexa que irá manter até finais dos sessenta e que realiza, em grande medida, em Paris. Sua pintura é considerada como americanista pela presença de atmosferas telúricas próximas à cosmogonia do homem pré-hispânico, homenagens e oferendas que ele faz à natureza e aos deuses que somente ele conhece: Guardiana (1967). Ele multiplica a pincelada livre, bem como os planos de cor em combinações cromáticas um pouco arbitrárias, que do ponto de vista plástico e de composição, podem gerar movimentos ondulatórios e fortes vibrações que virtualmente animam a superfície da pintura.
Para A Grande Bruxa e outras pinturas que têm a mesma composição, são importantes os enlaces performáticos em relação a suas considerações temáticas; Vigas não intervém no contexto, mas sim aproveita o questionamento geral que se faz à linguagem acadêmica da arte que muitos pintores estavam mostrando livremente. Ele continua obedecendo aos códigos, “representações” figurativas supramencionadas, mas os modifica quando fragmenta a imagem, reduzindo-a a sua mínima expressão e dando seu máximo significado, talvez seguindo o conselho de Arnold Shöenberg: “Na arte qualquer conteúdo deve determinar automaticamente sua própria forma”. Ele percebe as necessidades sociais, políticas e culturais da época e se adapta às exigências da contemporaneidade, e estando bem longe dos parâmetros figurativos conhecidos, procura um balanço entre o real e o imaginário para poder chegar além do seu círculo de representação. Mostrando suas motivações com a pintura através de uma metalinguagem particular, cria um contexto ao mesmo tempo enigmático e misterioso, que estabelece um canal de comunicação entre a obra e o receptor. O elo entre forma-figura-bruxa é importante por causa da composição do espaço pictórico e das relações color-borda-forma.
A figura feminina domina a obra de Vigas em todos os períodos. Ela foi deformada, barroquizada, desestruturada, desconstituída, e depois reinventada com fortes traços de cor sobre o tecido. Ele avançou significativamente em toda sua trajetória, houve mudanças em todos os períodos, mas sempre manteve seu eixo figurativo; escurece ou esclarece suas cores; substitui a superfície lisa pela texturizada; a matéria densa e as formas aparecem no espaço em um expressionismo quase abstrato, que pode ser considerado muito próximo à escola expressionista norte-americana, à arte bruta e ao grupo Cobra. Vigas poderia ser considerado um impenitente figurativo e informalista pela densidade matérica, o gesto impulsivo e livre, e nas obras dos anos sessenta, pelo cromatismo obscuro e violento com a preeminência do traço preto grosso. Estas características foram constantes em toda sua obra, embora esclarecesse as cores e as levasse para suaves temperaturas de cor e definisse as formas com este forte traço, fundamentalmente preto: Duende rojo (Duende vermelho) de 1979, Mujer en rosa (Mulher cor-de-rosa) de 1985, Tentaciones de mi adolescencia (Tentações da minha adolescência) de 1994, Diablesco (Diabólico) de 1999, Un canto a la vida (Um canto à vida) de 2003, Gran curandera IV (Grande curandeira IV) de 2009 e Mantuana III (2010).
É importante salientar em todo momento que o artista propõe a materialização de uma imagem figurativa como sendo a construção autônoma da realidade. Trata-se de um realismo um pouco paradoxal, já que não existe outra figura que seja igual à dele, porque, a final de contas, esta é só o resultado da imaginação do criador e nunca foi uma parte do real e temporal. A obra de Vigas também não deve ser vista como um “comentário” modernista que se projeta com a temática da época; ele estava interessado na visibilidade de uma obra na qual se enfatizasse no valor absoluto da matéria pictórica. A ambivalência entre o figurativo e o abstrato mostra a instabilidade da representação figurativa em uma dimensão ilusória do realismo. A verticalidade da forma corresponde à do ser humano e, inclusive, ao formato da pintura. Seja qual for o meio que ele utilize, isto não é tudo o que analogicamente foi apresentado por Vigas. Seguindo um eixo vertical e em posição frontal, ele localiza a personagem no centro da composição para que seja a protagonista do cenário plástico; esta personagem, contraposta a um fundo aparentemente vácuo, mostra seu “corpo” interior marcado por pinceladas inconclusas e manchas com cores de diferentes dimensões e grossura. Ele conclui numa espécie de narrativa cromática que responde a certas características emblemáticas de sua pintura, entre elas a conhecida oposição forma-fundo, que aparecerá a partir dos anos setenta, até se tornar mais enfática e dominante nos grandes formatos alongados da década de dos mil: Gran curandera III (Grande curandeira III) de 2008.
Ao longo de sua trajetória, Oswaldo Vigas mantém a independência representativa da imagem deformada, descentrada internamente e colocada em fragmentos que são recompostos graças a certas “inscrições” não visíveis e a “sinais” formais sugeridas para que o discurso figurativo seja compreensível. Ele foi admirador das técnicas de Wifredo Lam (La jungla, 1944), Pablo Picasso (Les demoiselles d´Avignon, 1907 e seus collages cubistas), bem como das mulheres contrafeitas do norte-americano Willem de Kooning, sem deixar de lado a Vênus pré-hispânica, e torna a forma em uma entidade autônoma do real por ser reproduzida totalmente recorrendo só àqueles segmentos que lhe interessam e aos limites e às decisões formais próprias, para que, no transcurso deste processo, possa transformá-la em um ícone de si mesma. A deformação, na figuração e na abstração controlada, estabelece um método teratológico de pesquisa dependendo do comportamento da forma-figura-fundo que haja no plano pictórico, e partindo dessa “sensação” da imagem no sentido cézanniano do conceito, encontra-se o estilo pessoal de Vigas. A imagem que se tornou um símbolo devido às considerações estéticas por sua beleza ambígua, determina os valores formais-plásticos que podem expressar a carga espiritual que vem do seu interior. Em uma entrevista à jornalista A. Feltra do jornal El Universal em 1979, Vigas diz: “(…) há produtos que vêm da imaginação e da fantasia que são compromissos existentes entre vários mundos (…). Quando são expressados plasticamente permitem o aparecimento das angústias e da saudade que não podem se manifestar com palavras (…). Poderão chamá-los talvez de “fantasmas” e ter alguma relação com o sentimento religioso ao que pertencem também os anjos e os demônios”.
É importante fazer referência ao trabalho tridimensional de Vigas. Sua escultura surge como reminiscência de sua pintura, dela extrai a figura essencial para poder ter várias possibilidades de experimentação. Ele gosta da dialética entre os diferentes meios de expressão, pois cada um deles oferece alternativas para formular expressões plásticas referenciais do universo arcano de civilizações antigas e ao mundo da contemporaneidade com seus problemas e suas angústias. É fundamental a procura de elementos expressivos imanentes; neste sentido tira da figura qualquer possibilidade decorativa para levá-la a sua síntese mais estrita. Para ele são importantes as texturas, a organização de entrantes e salientes visualizados sobre a superfície da peça tridimensional, bem como os tamanhos que se geram a partir da incidência da luz sobre suas cavidades e espaços sólidos. Em 1985 apresenta seus primeiros bronzes. Mantém até hoje seu interesse pela escultura, bons exemplos disto são as peças chamadas: Guardián (1994), Matadora (1997) e Garota (2007).
Uma síntese da trajetória plástica e estilística de Oswaldo Vigas deve insistir em que seus trabalhos iniciais: suas primeiras pinturas e desenhos —nos anos quarenta— convergiram em um expressionismo fantástico, uma série de cenários oníricos apresentados sob formas orgânicas com a constante motivação da figura-mulher e da paisagem; já para finais desses anos, começa a fazer uma maior modificação nessa figura, pressagiando que aquela imagem se tornaria o arquétipo icônico de sua obra. Nos anos cinquenta foi bastante marcado este estilo novo, levando a uma estilização geometrizada. Neste momento, o artista acentua a qualidade matérica das texturas e desce a temperatura cromática com predominância de cinzas, ocras e verdes, mantendo os tons escuros. Para meados desses anos elimina o que considerava acessório, a fim de destacar o mais substancial da “presença” figurativa. Ele conclui com um trabalho no qual define objetos pretos, pinturas geométricas um pouco sombrias. Os nomes de algumas dessas pinturas foram: Objeto vegetal, Objeto cinza e Objeto americano preto, dentre outras.
Vigas inicia os anos sessenta com um interesse na corrente informalista, portanto, começará a se dedicar a exaltar ao máximo as características predominantes em sua obra anterior. Volta à figuração, mas desta vez fortalecida por sua experiência com o informalismo. Além disso, realiza a série chamada Personagrestes, onde o tema bruxa-mulher domina uma estrutura compositiva aberta, com traços dirigidos em várias direções, e os planos de cor. Desvia-se, durante um breve período abstrato, que se reduz à geometrização sintética da figura organizada em planos quase monocromáticos. Aparece novamente a figura vertical e hierática, entronizada no centro do tecido e que se torna mais compulsivamente geométrica durante os anos oitenta. Nos anos noventa, ele persiste na síntese da forma com a introdução de mudanças significativas na composição e na desconstrução da imagem figurativa, a cor de fundo será decidida dependendo do tom do tecido, isto é, são fundos sem pintura. A partir de 2000, a relação fundo-forma se acentua, bem como a utilização de vários matizes de brancos, cujo intuito era destacar a composição; legitima a imagem em todas suas acepções figurativas, reconhecíveis ou não, que assumem diferentes funções dentro de uma única apresentação estética e coerência temática. Em conclusão, trata-se de uma imagem expressiva em relação a sistemas universais plásticos e a significados de pertença do gênero humano: complexidade icônica e psicológica que é característica da figuração —ou da desfiguração— da arte contemporânea.
Oswaldo Vigas assumiu um compromisso com a arte e passou a vida em sua oficina, em países diferentes e em família. Falece em Caracas em 22 de abril de 2014.
Notas